Um Canto A Dante

C. S. Xavier
9 min readDec 30, 2018
Uma Singela Homenagem ao Grande Poeta da Obra “A Divina Comédia”, Dante Alighieri (1265–1321)

Em tentar uma proeza gigante,
numa saga a mim maior que o talento
possuído, bem aquém do de Dante,

a contenda em já temor, para alento
meu, avoco com assaz evidente
incerteza em mim fundada ao intento.

Da fugaz força dest’alma e na mente,
assumindo risco ousado escrevendo,
só do céu hauro licor da semente

que os poetas musa planta ascendendo
às virtudes liberais duma escrita,
traz veloz mel sobre nós socorrendo.

Sem demora, vou grafar a bonita
fiel busca da beleza ditosa,
que escrever em terza rima me incita.

Da comédia mais divina e famosa,
tema vem por formatar este atino,
digitando sem tintura zelosa

de que outrora meu tutor florentino
os poetas ergueu, ínclita aurora;
paraíso fez das letras divino

prazer, dando a mim poética agora
que me vale a reter nobre empreitada
destes versos a talhar que me aflora.

Da selvagem selva, vil e foscada,
que esquisita perdição não termina,
fabulosa ao céu jornada cantada

lá começas com a luz que ilumina
em Virgílio, guia douto e sereno,
que obedece Beatriz, a regina

unicíssima do amor teu terreno
a pulsar o teu aprumo celeste
por caminhos onde o tempo está pleno.

A desordem de tu’alma me investe,
pois floresta que em passado estiveras,
na atual seria abrigo inconteste;

perdição foi com o andar destas eras
abismal, tirando o mal do inverno,
piorando o interior das três feras,

corrompendo o ser humano moderno
a tornar tua abertura sem porta
em mais vasta ligação para o Inferno.

Fui levado de esperança por torta
rota, lá… Que fantasia eu sorvo!
Que fantástico dantesco a comporta!

Pós ouvir o crocitar dum bom corvo,
fui tragado a fantasias que me agem
a rumar a exato lar deste estorvo,

tal qual sonho onde pulula coragem,
porque fora não deixei esperança,
quando fui em vestibular carceragem:

Que cenário de pavor sem parança;
são milhões em perdição sem proveito,
por brasão que só se vai e não se alcança,

nada abaixo e nada ao céu ter direito,
com perpétuos ferrões no horizonte,
muita dor, choro e suor como efeito.

Ando lesto em direção do Aqueronte
a avistar não mais a barca: o cargueiro,
pra dar conta da função do Caronte

de transpor ao fado ardil derradeiro
tantas almas condenadas às chamas;
e em carona, cruzo as águas inteiro.

D’outro lado, sem os meus quilogramas,
sobe a nau, porque no Limbo lá desço
no abissal cone invertido dos dramas

dos espectros, donde ali não conheço,
dentre os nove, o dos pagãos é primeiro
e andejar por baça dor é o começo.

Nenhum grito, só suspiros! Me esgueiro
a brilhante e portentoso castelo,
vou por portas sete em muros ligeiro

vendo Homero com Platão, sábio e belo,
Aristóteles, Horácio, Lucano
e Virgílio que guiou-te singelo.

Saciado, continuo no plano,
na descida mor soturna do mundo,
batizado me retiro do engano

até Minos, rei do disco segundo.
Enlaçando, turnos cinco, a vidente
cauda, presto me arremessa a profundo

sinistríssimo buraco dolente.
Sobrevôo feito pluma a má vala
lacrimoso olhando penas descrente.

Do tufão da incontinência, que embala
a luxúria a danação por inteiro,
pouco abaixo com furor que me cala,

late e rasga em circulante terceiro,
três em um, Cérbero, cão corpulento,
contra os porcos chafurdando em chiqueiro.

Dos gulosos, passo de ar pestilento
atingindo a cercadura seguinte
que o dinheiro fez; lugar agourento:

caridade lá só há como acinte.
Tal qual Hades, guarda Pluto possesso
estes réus, sem ter pincel bom que os pinte,

perdulários e avarentos ingresso
têm por sede na detrás prima vida,
ou de guarda ou de gasto em excesso:

d’enricar cravou-se eterna ferida.
Queda adensa e neste umbrífero espaço
retardando vai o meu vôo e descida,

pois a chance de estar, ó Contrapasso
do Juiz, perdido em círculo quinto,
Minos viu! De me acalmar eu já caço,

pois mudar ainda posso e não minto.
No Estige pouso, em só lodo e grude:
rancorosos e iracundos eu sinto

que se afogam no mais turvo palude.
Passo aperto e Flégias vem como um raio
de má Dite cujos muros me alude.

Peso o barco e desta margem eu saio,
onde o mundo todo não me responde,
na mudez volta veloz de soslaio,

aportando onde o vigor meu se esconde
no portal, em que a garganta afunila,
arrombado sem ter mal que lhe ronde

desde o brilho angelical que cintila,
quando a ti se deu passagem sem berro,
pela Lei que nem Medusa vacila.

Adentrando na Cidade de Ferro:
Com os túmulos no ardor dos hereges,
eu disparo e das fogueiras me erro,

me evadindo para o fim dos chãos beges.
Minotauro vem que aguarda na entrada,
por Virgílio eu lá querer: — “Me proteges?”;

mas me vendo, o ser atroz não fez nada,
e em descida ao Flagetonte disparo
para o sétimo escalão da jornada.

Dentre as rochas que na trilha deparo,
a potência se mensura da Glória
que desceu do sofrimento em amparo.

E assassinos e ladrões da História,
no xadrez de, em sangue, mar, são flechados
por centauros com destreza notória.

Tal qual todos teratismos calados,
no seu lombo de cavalo um me cruza
aos tormentos de suicidas cravados

que nem árvores, que bosque conduza
os que em si fizeram morte covarde,
que faz selva dilatar inconclusa.

Do sofrer que das harpias se alarde,
zona vou que pelas chispas se esquenta;
por beirada de areal que bem arde

e blasfêmia e sodomia sustenta,
sigo em senda que couraça me dava
contra as cinzas donde a queima se ausenta,

ao declive em que a penumbra morava:
bolsas vêm que Malebolge castiga
fraudulentos lá da órbita oitava.

Na beirada d’angustura inimiga,
Gerion bem cabisbaixo me espera;
amontar na criatura me intriga,

mas preciso, pra descer, desta fera.
Fecho os olhos e vou nele subindo,
abre as asas o monstrengo quimera

e descendo em pretidão vai se ouvindo
a cascata que no fundo desova
até ver quando as dez fossas vem vindo.

Voejando sobre aquela corcova,
diferente de tu’alta aventura,
só por céu minha viagem inova.

Na dezena de valões vi tortura
de bilhões de condenados malditos,
em que três a quantidade supura:

Na segunda bolsa sofrem aflitos,
os que em merda a soterrar os ensope
por febris bajulações como ritos;

no concurso, ganha a prata a galope
bolsa sexta dos hipócritas gralhas
que, nas vestes chumbo ser envelope

por razão díspar das falas com falhas,
são milhares por segundo chegando
a cobrir val que só tem tais canalhas;

e em terceiro posto, quase ganhando
posição, na nona bolsa acumula
um sofrer horripilante que, quando

vi, pasmei com tal nação que circula
em um mar de puro sangue torrente
do cortar e mutilar que veicula

um exército perverso e pungente
de diabos, retalhando sem pena
quem discórdia semeou para a frente.

E no fim de adejo hostil sobre a cena,
pós fedor da vala dez que se traga
dos que fraudam com malícia terrena,

criatura vai descendo na plaga,
em fronteira com gigantes em guarda
com seus pés em chão mais fundo da fraga.

Do umbigo para cima me aguarda,
mastodôntico é Anteu lá parado
e a descer-me pro Cocito não tarda,

pavimento de terror congelado,
nas entranhas deste Inferno terrível,
que o trair mor Belzebu tem ao lado.

No desdito frio picante e sofrível,
finda as crônicas de fogo e de gelo
em mordaz glacial brejo incredível.

De amargura, berro e dor, pesadelo
nono círculo confere em justiça
por qualquer das quatro partes sem zelo.

Em minado campo azul, se aterrissa
quem traiu com níveis vários de dolo,
que em passar entrecorrendo me atiça.

Quais batráquios procurando consolo
que cabeças fora d’água sustentam
tal pesar que a traição faz tijolo;

tiritando roxos, zéfiro agüentam,
que chorando em sibilante nevasca,
lesto lágrimas em cubo os atentam,

sem mais ver, quem enganou com carrasca
trairagem, seus parentes, países,
seus amigos e quem mais sofreu lasca.

Deslizando da Caína, vem crises
congeladas da brutal Antenora;
e em terceira região mais narizes:

Toloméia. Ainda vivos lá fora,
com diabos vigiando a matéria
dos seus corpos, em que a vida vigora,

no momento em que, a jazer na miséria,
seus espíritos já sofrem crueza
congelante bem pior que a Sibéria.

Na Judeca da mais pura torpeza,
Satanás ainda Judas mastiga
por frontal boca da trinca vileza,

no recôndito da Terra que abriga
o pior gigante alado da ofensa,
que está lá desde revolta inimiga

encravado, pela queda e sentença
de Deus: Lúcifer, o Rei da Maldade,
quem por costas a saída ele prensa.

Escorrego pelo dorso que invade
o outro lado, que tem céu por zimbório,
com regato que por Letes se evade

toda falta que filtrou promontório,
que cortejo estupefato o tamanho
do maior cume que há: Purgatório!

Um fagueiro respirar eu já ganho,
quando noto lá Catão que se posta
a ditar que pra eu subir, devo um banho.

Nisso, branca Pomba enorme na crosta
vem surgindo pra me dar um aviso
que, por Ela, subirei vasta encosta,

pois: — “Atalho do voar é preciso
já que em sonho a duração se dissipa,
porque o gosto pelo medo analiso

ser do foco de interesse a sulipa
dos humanos em qualquer existência
e do Inferno cê não mais participa”.

Me agarrando meiga n’ombro, em potência
me levanta por tais asas grã Ave,
que nos juncos me afundou na clemência,

expiando na prainha suave
meus pecados para um vôo mais leve.
Logo após embica a rota pro enclave,

no sincrônico momento bem breve,
em que barca angelical descarrega
sombras salvas nas areias de neve.

Por planar a minha Nave escorrega
sobre o ar do rogatório externo,
sob a luz do Sol intenso que cega,

dirigindo-nos ao Céu sempiterno,
por cornijas capitais sete em frente,
no maciço singular que prosterno.

Do lugar de quem tardou penitente
ser, voamos té portal com de cores
três degraus que em zelo está ser temente,

que brilhosa espada a mim, bons leitores,
apontou, quando um queimar logo sinta
nesta testa me marcando sem dores

os pecados meus, enquanto distinta
Santa Lúcia que, pra mim lá, querida,
defendeu minha viagem sucinta

junto ao anjo guardião da comprida
trajetória de perdão da montanha,
que em contornos ascendemos na ida.

No mais largo vão dos sete, tamanha
pena vem a quem com débil orgulho
pautou vida com vaidade — artimanha

favorita do Satã. Pedregulho
penitentes têm que ornar nesta altura
té soberba desabar em entulho.

Do alvo mármore que filtra a tesura,
de pertinho vi terraço da inveja
atulhado de chorões com costura

nos vis olhos, por arame que enseja
coibir cobiça má por vizinho
e, no breu, bem dos sons vem que se almeja.

No terceiro patamar rapidinho,
vejo fumo que em raivosos se tece
por cegueira que encafurna o caminho.

Neste espesso véu, o olhar me esvanece,
que iracundos se apaziguam por cantos,
e em domar meu furor já fito cresce.

No lugar em que rezar reduz prantos,
alva Pomba sobe e Sol vai descendo
por andar onde, da acídia tem tantos

preguiçosos, que em ficar só correndo
sem parar, na marcha ao Céu chispam reto
e veloz asas vão d’Ave batendo.

Tal voar ágil que à luz faz inseto,
vem recinto do avarento castigo
debruçando, quem cerviz teve ereto

quando vivo; cara ao chão qual mendigo,
em labéu, almas percebem juízo.
Da varanda menor sexta, consigo

observar secos famintos de viso
carcomido, que voraz gula espúria
fardo faz, que só de ver agonizo.

Por fim, volta vem menor da luxúria
entupida pelos que ardem ainda
se abluindo, com tais chamas, de injúria.

Finalmente, em sacro cume se finda
Vôo Santo, que me pousa em silvestre
bem-estar. E Ave do Céu vai-se linda

ante d’Árvore do Éden terrestre,
onde, em luz, me diz Matilda: — “Na testa
tua, vícios não te deixam pedestre

ser aos Céus dos Casarões sempre em festa!”
Triste fico, mas d’Esferas fulgores
contemplando, de Deus, Paz já me infesta!

Procissão de Cristo miro em louvores
quando, pasmo, Beatriz ao teu lado,
lá vislumbro dentre os santos senhores.

Afinal te vi, poeta aclamado,
acenando para mim, sem engano,
com dizer que o meu sonhar foi cerrado:

— “Gratidão só tenho a ti, Cristiano,
e pra’qui retornarás facilmente
se aplicares as lições deste arcano”.

Logo acordo e vou tirando da mente,
o que em versos tal poema se traça.
E se leres só julgando vilmente;
só me resta te pedir: — “Olha e passa!”

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C. S. Xavier

No exercício contínuo da mais perene atividade entre os mortais.