Por Que Virgílio Virou Guia Do Dante?
Por que o poeta Virgílio (70 a.C.-19 a.C.) foi o guia do personagem Dante, de Dante Alighieri (1265–1321) na “Divina Comédia”, para conduzir o florentino só até as portas do Paraíso Terrestre (pelo Inferno e Purgatório) e para que, dali em diante, quem o guiasse pelas Nove Esferas Celestiais fosse a sua musa Beatriz Portinari (1266–1290)?
Dante (autor) começou a escrever seu majestoso poema por volta do ano 1306, já em seu exílio político como um guelfo branco pelos vitoriosos guelfos negros; depois, se sentindo traído até pelos próprios copartidários, se isola e forma um partido de um homem só. Dante nunca mais voltou à sua terra natal, Florença, até a sua morte, em 1321… E nem depois dela, ficando seus restos mortais em Ravena. Sendo que a poesia é narrada na semana de Páscoa do ano de 1300 (por isso, os personagens que ele encontrava tanto no Inferno quanto no Purgatório e Paraíso, já na eternidade, conseguiam “prever o futuro” de Dante e dos eventos que ocorreriam: eles já haviam transcorridos).
A virtuosa Santa Luzia (283–304), ou Santa Lúcia de Siracusa (a favorita de Dante e, também, a Santa Protetora da Visão [para enxergar melhor; e sendo o próprio Dante um portador de problemas de visão e devoto dela] e da Justiça [para agir melhor]), na sua vigília por seu protegido, Santa Luzia fala a Beatriz, lá no Paraíso, para ajudar Dante, que se encontra perdido nos pecados (na “selva escura” [perdição] e de costas ao Sol [Deus, Salvação]; sendo que a loba [avareza], a onça [luxúria] e o leão [vaidade] representam os pecados que mais pesam sobre ele e seu tempo e lugar, e lá o amedrontam e o impedem de escalar a montanha para sair das sombras e encontrar a luz). E ninguém mais competente para enxergar o poeta perdido no escuro do caos, pecados e injustiças do que a Santa Protetora da Visão e da Justiça.
Beatriz vai até o Primeiro Círculo do Inferno (Limbo), onde jaz Virgílio (que fica lá por ser um pagão latino de uma era pré-cristã. Depois que Cristo morreu, ele desceu ao Inferno e resgatou todas as almas que seguiram o Deus de Israel mas que não podiam entrar no Paraíso depois da Queda (quando o homem rompeu com Deus) e Jesus Cristo — Divina Oferenda e Sacrifício Humano perpétuos — restabeleceu o caminho para a Glória Eterna. Virgílio não seguia o Deus Verdadeiro e não foi contemplado pela Graça da Salvação quando testemunhou a descida portentosa do Salvador ao Inferno; no entanto, pelo fato de ele ter honrado as Sete Virtudes Morais (que inclui as Quatro Cardinais [prudência, justiça, fortaleza e temperança] e, principalmente, as Três Intelectuais [inteligência, ciência e sapiência]) ele reside num reduto privilegiado e apartado do resto do Limbo).
“«Diz-me, meu mestre, diz-me, meu senhor,»
comecei, por querer manter-me certo
daquela fé que vence todo o error:«Por mérito algum deles foi liberto,
seu ou alheio, e após santificado?»
E tendo ouvido meu falar coberto,disse: «Inda era eu novo neste estado,
quando vi aqui vir um mais potente
com sinal de vitória coroado.Tirou a sombra do primiparente,
de Abel seu filho, e Noé, desta grei,
e Moisés legista e obediente;Abraão patriarca e Davi rei,
Israel com o pai e os dele nados,
e com Raquel, por quem sofreu tal lei;e a outros muitos fez santificados;
e quero saibas, que os espritos, antes,
dos humanos não eram resgatados.»”Dante Alighieri
Virgílio se encontra na eternidade infernal no Castelo da Filosofia, onde os condenados não sofrem penas de dor ou castigos, mas nunca contemplarão a Graça de encontrar Deus, já que ficaram apartados das Virtudes Teologais cristãs: fé, esperança e caridade. Beatriz então se manifesta e pede a Virgílio que ajude Dante a sair daquela perdição e que o guie no caminho certo rumo ao Primum Mobile, numa viagem didática e exemplificativa em que deverá descer primeiro ao Inferno, encarar a crueza dos pecados, seus condenados e horrores, e, após isso, subir pelo Purgatório, íngreme e custoso, encontrando a alegria e agonia dos salvos — mas ainda impedidos de gozarem da Graça Eterna pelos pecados que os maculam — que lá sofrem e purgam suas faltas.
Virgílio de Mântua é o poeta favorito de Dante, ambos latinos, e, por isso, ninguém melhor para o poeta admirar, confiar e seguir. Como o mantuano, o florentino elevou as virtudes humanas através da Poética. Na “Commedia”, Virgílio representa a razão humana e nossas virtudes morais (intelectuais e cardinais), as necessárias para o homem reconhecer o bem, a verdade, a beleza e a justiça, fazendo uso dos dons dados por Deus a cada um de nós da melhor e mais diferenciada forma possível, para, com isso, perseguir o certo e guiar os errados.
Dado isso tudo: quando Dante narra a sua aventura, Virgílio já habitava o Inferno (Limbo) há 1319 anos, ou seja, conhecia muito bem o local e perigos de lá. Lembrando que ele está lá devido ao fato de ter vivido numa era e sociedade pagãs, antes de Cristo, e não ter prestado “a Deus o devido rito”. Ali, mora junto dos grandes pagãos da Humanidade como Homero, Platão, Pitágoras, Aristóteles, Ovídio, Horácio, Lucano, entre outros sábios ou justos homens que não padecem dos mesmos castigos lamuriosos dos demais pagãos do Limbo.
“«E vindos antes do cristianismo,
não prestaram a Deus devido rito,
e eu mesmo sou um deles neste abismo.»”Dante Alighieri
Além disso, foi Virgílio quem escreveu a épica “Eneida”, que conta as aventuras do herói semideus dardânio, Enéias, filho da deusa Afrodite (Vênus) e de Anquises, que lutou ao lado dos troianos na Guerra de Tróia, e que depois que a cidade caiu para o gregos, acatou os conselhos de sua mãe e fugiu com um pequeno grupo até a Itália, ocasionando a sua fundação. E está aí, a motivação mais poética para que ele vire o guia de Dante. Quando Enéias fez escala em Cumas, ele consultou a sacerdotisa Sibila do deus Apolo, sobre um desejo intenso de rever seu pai, Anquises, que morrera no início da aventura, para com ele se aconselhar no Reino de Hades (Plutão). O herói obtém a permissão e desce sensivelmente (carne e osso, como Dante também o fez) ao Mundo dos Mortos.
Enéias, de corpo e alma, então trilhou o temível e tenebroso Reino de Hades. E por ter conseguido se encontrar com o seu amado pai e ainda voltar ao nosso mundo, o dos vivos, são e salvo, realizou um memorável feito. E quem conduziu Enéias ao obscuro Mundo Inferior e o tirou de lá, em segurança, senão o autor da “Eneida”, o próprio Virgílio? Então, eis o guia ideal: é o favorito de Dante, tem sua admiração e confiança, é um sábio, já guiou Enéias por aquelas escuras sendas, mora no Inferno há séculos e conhece como ninguém aquele lugar.
“Abrem-se enfim, por si sós, as cem portas do templo suntuoso,
para as alturas levando as respostas da maga Sibila:
“Ó tu, que alfim te livraste dos grandes perigos dos mares!
Outros, maiores, em terra te esperam: aos reinos lavínios
virão os filhos de Dárdano. Disso, porém, não receies;
lastimarão muito cedo até lá terem vindo. Percebo
guerras, terríveis encontros e o Tibre espumando de sangue.
Não sentirás falta aqui nem do Xanto, do torvo Simoente,
nem do arraial dos aqueus. Já no Lácio nasceu outro Aquiles,
filho também de uma deusa, e assim mesmo outra Juno, a inimiga
irredutível dos troas. Premido por tantos obstac’los,
de que nações, de que povos da Itália não vais socorrer-te!
E a causa, sempre, a mulher, novamente uma esposa de fora,
tálamo estranho aos troianos.
Porém não cedas; com mais decisão para a frente prossigas
quanto a Fortuna o deixar, pois a luz salvadora — o que nunca
puderas crer — te virá de uma grande cidade dos dânaos”.
Com tais rugidos, do fundo da cova a Sibila cumana
conta mistérios terríveis em termos escuros, de envolta
com verdadeiros sucessos. Destarte a deidade dirige
seus arrebatos e o peito ofegante com as rédeas lhe açoita.
Passada a fúria de todo e já livres os lábios da espuma,
disse-lhe o herói em resposta: “Nenhum dos trabalhos, ó virgem,
ora evocados por ti constitui para mim novidade.
Tudo eu havia previsto e de espaço na mente apreciara.
Uma só coisa te peço: uma vez que o caminho do Inferno
começa aqui, na lagoa do rio Aqueronte convulso,
leva-me logo à presença da sombra do pai extremado.
Mostra-me a entrada a transpor, escancara-me as portas sagradas.
Por entre flamas aos centos, milheiros de setas aladas,
o carreguei nestes ombros, salvei-o das turmas imigas.
Meu companheiro de viagem, comigo enfrentou os perigos
inumeráveis das ondas, do céu carrancudo e sombrio,
conquanto inválido fosse, apesar da velhice inamável.
Sim, ele mesmo o ordenou, implorou-me insistente que viesse
falar-te agora. Por isso suplico-te, ó virgem, apiada-te
do pai, do filho aqui vindo. Tens grande poder. Não debalde
Hécate te colocou como guarda dos bosques do Averno.
Se pôde Orfeu evocar dos Infernos os Manes da esposa,
só confiado na lira da Trácia, de cordas cantantes;
se conseguiu remir Pólux o irmão, alternando com ele
na própria morte, ida e volta, mil vezes; a quê recordar-nos
do grão Teseu ou de Alcides? De Jove também eu provenho”.
Dessa maneira, com a mão sobre o altar o Troiano expressou-se.
A profetisa lhe disse em resposta: “De origem divina,
filho de Anquises, Troiano! Descer ao Averno é mui fácil:
sempre está aberta de dia e de noite a porteira do Dite.
Mas desandar o caminho e subir outra vez para o claro,
eis todo o ponto, o trabalho mais duro. Bem poucos, amados
do grande Jove, ou os que ao céu se elevaram por mérito próprio,
filhos de deuses, de fato o alcançaram. Florestas imensas
há de permeio no Averno, ao redor do Cocito sinuoso.
Mas, se revelas tão grande cobiça, tão forte desejo
de duas vezes o Estige cruzar, contemplar duas vezes
o escuro Tártaro, e o negro trabalho enfrentar decidido,
ouve o que tens de fazer em primeiro lugar: sob a copa
densa de uma árvore oculta-se um ramo de talo flexível,
de folhas áureas, a Juno infernal dedicado. A floresta
no seu negrume o acoberta, nas sombras dos vales profundos.
Mas não é dado a ninguém penetrar até ao centro da terra,
sem que primeiro dessa árvore arranque o áureo ramo com folhas.
Esse, o preceito que a bela Prosérpina impôs ao seu culto:
quando o primeiro é tirado, logo outro floresce na vara,
de ouro também recoberta, rebento precioso, em verdade.
Busca-o, então, com a vista e, uma vez encontrado, de acordo
com os sacros ritos o colhe, pois, sendo-te o Fado bondoso,
por próprio impulso te cede. Porém, noutro caso não há de
força nenhuma arrancá-lo, nem mesmo a do ferro potente.
Mas, enquanto isso — mal sabes, coitado! — , insepulto, o cadáver
de um companheiro se encontra, o que a todos os mais contamina,
enquanto aqui te demoras às voltas com esta consulta.
Antes do mais, o repouso lhe apresta, no túmulo o deita.
Seja a primeira expiação imolar reses negras do estilo.
Só desse modo hás de ver os domínios vedados aos vivos,
selvas estígias”. Falou. Logo a boca cerrada emudece”.Virgílio
E é devido a isso, que quando chega no Purgatório, Virgílio já não tem a mesma segurança para guiar Dante: ele nunca foi ali. E vai aprendendo junto com o seu pupilo o que fazer naquele reino de purgação até o Paraíso. E, no topo da Montanha do Purgatório, onde nasce os rios Eunoé (o “Rio da Lembrança” onde se restaura a memória das virtudes e das boas ações realizadas) e o Letes (o “Rio do Esquecimento” onde se lava os pecados, conduzindo-os ao Inferno), que separa o Paraíso Terrestre do resto, Virgílio encerra sua missão e entrega Dante aos cuidados de Beatriz, que já está na Glória de Deus e é a amada de Dante e, dessa feita, a melhor guia que o poeta poderia ter pelas Nove Esferas Celestiais até onde jaz a Santíssima Trindade, no Empíreo, etapa final que será o Doutor da Igreja, São Bernardo de Claraval (1090–1153), quem o guiará.