Pela Última Vez, Prometo

C. S. Xavier
11 min readApr 14, 2024
Justiça Deve Ser Defendida Até Quando É Inconveniente

Existem no mundo coisas que são tão óbvias que fica até complicado compreender que seres humanos adultos não consigam mais percebê-las. E a estas coisas é crescentemente mais custoso — digo por mim — ter que explicar o porquê são boas ou más. É como ter que explicar que se um sujeito quiser cortar o seu próprio dedo com uma faca, isto certamente vai doer e sangrar; e que se ele continuar o processo vai findar por decepar seu dedo; e que uma vez um dedo sendo mutilado, não cresce outro no lugar. Imagina ter que explicar isto a um adulto e ele ainda perguntar: “Mas por quê?”…

Então, da mesma forma, não é possível um sujeito que se diz direitista, conservador, cristão e afins, e que vive no Brasil e acompanha o descalabro juristocrático tirânico que vem ocorrendo nos últimos anos, e mesmo assim não ver o absurdo que é defender uma idéia brutalmente injusta e pró-impunidade (para justificar inações covardes) de que não adianta punir um juiz que comete crimes porque não vai “resolver” a criminalidade, ou porque pode vir um pior, ou porque — ó, alma de vira-lata — acha que não vai dar em nada mesmo… É importante ratificar que, segundo o Código Penal, crime é a infração penal que comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa. Dito isto, chega a ser humilhante ter que explicar por que meramente se vislumbrar como discricionário a punição dos crimes, ou seja, que crimes podem ser punidos ou não, está monstruosamente errado; mas, como prometido, pela última vez tentarei isolar o já atômico evidente fazendo uma moderna maiêutica socrática:

1) Violar Constituição Federal (CF) e Leis (nas infrações que cominam pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa) é crime? Sim ou não?
R: Sim.

2) Um juiz do STF violar CF e Leis para perseguir, interferir, censurar, prender inimigos é crime? Sim ou não?
R: Sim.

3) Juiz impedir que prerrogativa da CF do presidente (inimigo) de indicar Chefe da PF é abuso de poder e interferência e, portanto crime, ou só uma atitude rude?
R: Crime.

4) Juiz mandar abrir inquérito sem denúncia e invadindo instâncias e competências que não lhe cabem é crime ou só uma inadequação?
R: Crime.

5) Juiz permitir a vedada pela CF censura prévia “só desta vez”, é crime ou apenas uma impertinência?
R: Crime.

6) Juiz anular penas de condenado defendido por parente direto é crime ou somente uma generosidade?
R: Crime.

7) Juiz usando o poder no TSE para claramente interferir nas eleições violando direitos e garantias constitucionais de inimigos políticos mediante conluio, ameaça e até extorsão de responsáveis de redes sociais é crime ou simplesmente excesso de cuidado “democrático”?
R: Crime.

8) Outros juízes participando de julgamentos cuja origem é viciada, logo prevaricando e se tornando cúmplices em continuar com a farsa do juiz que solapou CF e Leis anteriormente é crime ou “Fazer o quê? Já tá aqui este absurdo tenho que dar meu voto…”?
R: Crime.

9) E juiz de STF que comete crimes deve ser punido ou depende do caso?
R: [Para os que argumentam que a aplicação da CF e Leis pode ser de aplicação circunstanciada] estão dizendo que depende do caso, da conveniência de alguma estratégia ou cenário futuros para se exigir aplicação da CF e Leis quando estas forem voadas, que de vez em quando é bom ignorar o crime afastando o que o tal “Estado de Direito” jamais permitiria oriundo de quem é probo…

Ou seja, será que não enxergam o absurdo que é — por mais de uma dúzia de segundos — conjecturarem isto seriamente, mesmo como sendo um mero reflexo condicionado de uma idéia a outra? Não percebem o caos que seria um Estado de Direito assim, com um simples extrapolar desta anomalia jurídica que estão criando como justificativa para impunidade seletiva se aplicada em todos ramos do Direito para os diversos tipos de crimes? Como não percebem o quanto é intrinsicamente infantil, inconseqüente, indolente e injusto tal argumento — se é que posso chamar isto assim — e postura, e o quanto promovem assim a impunidade (que levantam a bandeira dizendo que têm que ser combatida e quando tem uma chance grande de pôr em prática refugam)? E não quero nem saber se, mesmo lendo isto (ou desenhando o óbvio pelo mais perfeito diagrama), permanecerão não entendendo que estão errados ou, pior, que ainda preferirão continuarem no erro; minha obrigação é me enraizar profundamente contrário a qualquer equívoco que surja — em tempos em que se prosperam abundantemente a confusão e a estupidez sistêmicas — e não me vergar diante do erro, injustiça, mentira e maldade. Mesmo que eu seja o único no orbe inteiro percebendo o certo, a verdade, a justiça e a bondade.

A Vaidade É o Pecado Favorito dos Demônios

“Quando se lê esses escritores dos anos cinqüenta e sessenta e repara-se o altíssimo nível do debate público da época — que hoje se tornou impensável — você se pergunta como é que isso começou a acabar e, exatamente, como descrever o que aconteceu. As pessoas não se estupidificam naturalmente, o ser humano não é naturalmente estúpido, ao contrário, pois já dizia Aristóteles que é mais natural perceber a verdade do que estar no erro, assim como é mais natural ter saúde do que estar doente. O ser humano tem uma aptidão natural para compreender a verdade, embora falhe por motivos morais, entre outros, mas a falha continua sendo falha, a natureza ainda é aquilo que é: por definição, o que é natural para os membros de uma espécie, é saudável para os membros desta espécie. Quando há um processo desses de estupidificação geral, não se pode atribuí-lo à natureza, ele não aconteceu naturalmente; houve alguma interferência humana, que pode ser de dois tipos: uma interferência calculada — alguém pretendeu baixar o nível dos debates públicos — , ou o contrário: como diz Max Weber, foi um efeito impremeditado de ações que visavam um outro objetivo completamente diferente, ou que até foram empreendidas por pessoas que não tinham a menor consciência dos efeitos possíveis que elas poderiam desencadear.
(…)
O número de pessoas que usam esse termo “retórica” — nem sempre estão mal intencionados, evidentemente estão tentando expressar alguma em que eles acham de fato — mostra esse hábito brasileiro de usar as palavras pela impressão emocional direta que elas causam, sem ser necessário uma referência ao objeto de que se trata. Esse é um dos “topoi”, lugares comuns, dos brasileiros, uma regra da “logica brasiliensis”: nunca lembre às pessoas a distância que pode haver entre a palavra e a coisa, aliás, nunca se refira a coisa nenhuma, fique na relação direta palavra-emoção. As pessoas podem escrever textos inteiros assim, onde não há uma só referência a qualquer coisa do universo real, nada, mas só uma sucessão de emoções causadas diretamente por evocações associadas a esta ou aquela palavra pelo uso repetido.
(…)
O debate público brasileiro se tornou uma hipnose verbal mútua, em que nada pode ser analisado, as coisas só funcionam quando não analisadas, como numa mágica: você a analisa e o seu efeito acaba. Um tenta vender a mágica aqui, e o outro lá, mas é tudo mágica no fim das contas, é um uso infantil, fetichista da linguagem. Para quem cresceu lendo Álvaro Lins, Otto Maria Carpeaux, Augusto Meyer, Júlio de Mesquita Filho, é acachapante, aterrorizante. O tamanho da estupidez realmente me aterroriza, eu cheguei à conclusão de que a burrice é uma força física, tem densidade, massa, e freqüentemente as palavras são impotentes contra ela. É como se você tentasse fazer com que um muro saia do lugar mediante palavras, você as diz, mas ele nem sequer recebe a sua informação.
(…)
Alegar hipóteses contra fatos no Brasil tornou-se endêmico e obrigatório. Em todas as discussões que houve sobre o Foro de São Paulo, isto acontecia a toda hora, interpretações do tipo: “Você acha que esses comunistas vão fazer tal coisa?” Respondi que não achava, eu tinha dito que eles fizeram, não é uma conjectura o que eu estava fazendo, era um fato do passado. Como se pode tentar impugnar um fato do passado com uma conjectura do futuro? O número de pessoas que tentou, como se fosse o argumento mais normal do mundo, foi muito grande. No caso a que me referi, o sujeito acha que os testemunhos que eu publiquei não valem, porque, se fossem diferentes, eu não os publicaria. Isto quer dizer que o errado não é acusar sem provas, mas defender-se com elas, aliás a prova de que é errado é que, se eu não tivesse as provas, não as mostraria. É algo claramente psicótico, mas isto se disseminou no Brasil de uma maneira impressionante. As pessoas acham que é normal. Quantas vezes você mesmo não usou argumentos desse tipo? A tentação de usá-los é muito grande, porque, se você quer vencer uma discussão, a própria raiva que você tem do seu adversário lhe sugere esquemas argumentativos instantaneamente, com uma rapidez e um automatismo incrível, a primeira tendência é sempre inverter: usar a mesma frase para dizer o contrário. Nesta base, as pessoas não apenas se deseducam, mas elas usam estruturas lógicas como instrumentos de defesa contra a consciência que poderiam ter do que elas mesmas estão fazendo.
(…)
Imaginem a quantidade imensa de normas, regras, que foram se impregnando na educação, na mídia, nas conversações, no ensino, e que hoje formam, por assim dizer, a cosmovisão brasileira. Tudo isso é o que nós teremos de mudar, teremos de criar uma nova cultura superior, mas, para criá-la, teremos de nos apoiar nos últimos que conseguiram criar uma cultura superior. Eu comecei a minha educação lendo a “História da Literatura Ocidental”, de Carpeaux, anotando os nomes dos autores e os títulos dos respectivos livros e depois os lendo. Na verdade eu não terminei até hoje, porque ele cita mais de três mil autores, cada um com dez ou vinte livros. O quanto disso eu consegui ler na minha vida? Um pedaço, mas um pedaço suficiente para eu ter uma visão do que é a história literária do mundo: quem aprendeu com quem, quais são diferenças de tradições de aprendizado literário; como dizia o T. S. Eliot, a literatura é uma tradição, onde um aprende com outro, que aprende com outro, e assim sucessivamente. Se você não é capaz de captar esta linha de aprendizado até o estado atual da arte, você não sabe o que está lendo.
Toda obra literária tem alusões a muitas outras anteriores, por isso que Jorge Luis Borges dizia que para entender um único livro é necessário ter lido muitos outros. Durante algum tempo vocês vão ler sem entender nada, mas não tem problema, vocês estão acumulando material, vocês têm que acumular na memória primeiro; decorem muitos poemas, decorem muitas músicas. Eu mandei meus alunos ouvirem a quinta Sinfonia de Beethoven até que conseguissem assobiá-la inteira, do começo ao fim. No começo eles acharam esquisito, depois que fizeram eles viram o bem que fazia. Quantas estruturas musicais eles não absorveram ali que depois tornaram mais clara a audição de outras músicas? Decorar textos é importante, para que você possa perceber o que é a sua estrutura verdadeira; quanto mais poemas vocês decorarem, mais facilmente lerão outros poemas, porque, mesmo que vocês não estejam pensando nas palavras do poema que decorou, aquela estrutura está lá e criam analogias com o que é lido em seguida. É assim que se faz.
Abstinência em matéria de opinião não significa não ter opinião nenhuma, significa jamais entrar nesses debates no nível em que eles estão colocados, porque não interessa vencer estas discussões. Para que serve vencer a discussão com um idiota? Não é nada de honroso. Vocês pensam que eu estou muito orgulhoso de ter discutido com o Rodrigo Constantino? Mostrei que ele era um idiota, provei que dois mais dois são quatro. Evidentemente ele é um imbecil, que não tem capacidade para discutir comigo; nem ele, nem Alaor Caffé, nem Emir Sader. Não há mérito nenhum nisso, mas eu não faço isso por mérito, nem para ganhar discussão, mas para coletar material e mostrar às pessoas a impregnação mental que existe de uma linguagem decadente, estragada e perigosa, operação que vocês mesmos têm de aprender a fazer para seu próprio proveito, cada um para si e se puderem trocar informações uns com os outros, tanto melhor”.

Olavo de Carvalho

Tirania É Ignorar ou Inventar Leis ou Só Usá-las Quando Convêm aos Tiranos

De novo, crimes têm que ser combatidos punindo os criminosos que os cometem e sempre que se tem a oportunidade para isto, sem desistir; e não só com discursos éticos belos e retóricos contra criminalidade. Criminosos que violam CF e Leis (e com os agravos previstos de quando são juízes da mais alta corte que os cometem) devem ser punidos numa luta contínua — mesmo que infrutífera — até nossa morte. Não importa se o Presidente do Senado vai prevaricar (de novo, o que é outro crime) ou não; não importa se não vai ter votos para um impeachment ou não; não importa se o Procurador Geral da República (PGR) vai arquivar uma denúncia ou não; não importa se, em uma reunião com a cúpula das Forças Armadas (FFAA) — guardiãs armadas da CF — realizada para se mostrar a gravidade que é tudo não estar funcionando, não sensibilizá-los de suas prevaricações como defensores em armas do tal Estado de Direito e, mesmo assim, estes comandantes preferirem a vergonha covarde e cumplicidade criminosa. E, ademais, se a punição e derrubada de cada juiz do STF que cometeu crimes tiver êxito, mesmo que sendo só de um, evidentemente isto proporcionará que na vinda de um substituto do anterior — mesmo que se trate de uma mistura de Stálin, Mao, Che e Pol Pot — este entrará sabendo, de olhos bem abertos ao Brasil e mundo, que ocupará o lugar de um antecessor que caiu por violar CF e Leis.

Se cometeu crime e, pior, se os crimes e a ditadura juristocrática ganharam publicidade mundial deixando os protos-tiranos expostos, nus e sangrando, é mais compulsório ainda a outorga de punir que qualquer brasileiro tem. E repito: mesmo que não obtenhamos sucesso e a injustiça e impunidade prosperem mais uma vez, é necessário não assentar com o crime. (Será que eles vão, a partir de agora, fazer palestras no exterior para falarem de “Democracia”, “Liberdade”, “Justiça”, como faziam na maior cara lavada?). E caindo um só é ótimo, pois depois de 1988 será a primeira mostra de grande enfraquecimento do poder de membros do STF (tanto aos outros dez que ficam quanto ao um novo que chega) e que a impunidade de décadas que tinham ruiu; mas mesmo não tendo êxito é vitória também, (menor, mas importante) já que escancara mais ainda ao mundo, com holofotes na gente — e aumentando dia após dia (uma surpresa para a maioria deste planeta) — que a terra de bundas, futebol, carnaval é também uma ditadura abjeta, cínica e hostil.

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C. S. Xavier

No exercício contínuo da mais perene atividade entre os mortais.