O Carnaval Dos Asnos

C. S. Xavier
5 min readMar 31, 2024
O Carnaval Perpétuo do Asno

Os símbolos e ritos religiosos são, respectivamente, uma matriz de intelecções que densifica a realidade em signos (seja pelo fenômeno de compactação ou seja pela diferenciação) e um conjunto referencial dos próprios símbolos (gestos, falas, ordens, disposições, arquiteturas, durações) que se remetem a um teor unificante entre o transcendental sagrado e o imanente profano, desde de sua origem tradicional (em que cada elemento tem um “porquê” e um “para quê”) através das gerações com ou sem a as tradições primordiais se diluindo em costumes ou meros hábitos.

Desta forma, toda vez que se esvazia os significados e referentes dos símbolos sobram apenas suas formas e, por tabela, os ritos começam também a perder suas causas, essências, fins e quiçá poderes, restando apenas sombras, ecos, mimetismos ocos em formato de costumes ou de apenas hábitos e que, geração após geração, vão se enfraquecendo continuamente, perdendo suas motivações e deteriorando suas sacralidades, se imanentizando e proporcionando, com isto, o aparecimento de toda sorte de misticismo rasteiro, feitiçaria sincrética e ocultismo torpe (inofensivo ou mesmo perigoso).

Foi precisamente este processo de deterioração e de degradação semiótica que acabou tirando o sentido sacro de inúmeros ritos e festas tradicionais cristãs, como, por exemplo o Carnaval (e a própria Páscoa [cristã]) absorvido pela cultura cristã numa simbólica própria. Destarte, para de forma célere melhor me fazer compreendido, vou apenas transpor alguns trechos do artigo “Sobre o Significado das Festas “Carnavalescas””, de dezembro de 1945, do simbolista esotérico francês, René Guénon (1886–1951), que vai no fulcro deste problema tão comum com os símbolos e ritos religiosos atuais.

“Seria um erro querer opor a isso o papel do asno na tradição evangélica, pois, na verdade, o boi e o asno, postos dos dois lados da manjedoura no nascimento de Cristo, simbolizam respectivamente o conjunto das forças benéficas e maléficas; eles se encontram também na crucifixão, sob a forma do bom e do mau ladrão. Por outro lado, o Cristo montado sobre um asno, em sua entrada em Jerusalém, representa o triunfo sobre as forças maléficas, triunfo cuja realização constitui, propriamente, a “redenção”.”

René Guénon

Na simbologia do bestiário universal, o “asno” é uma representação normalmente maléfica, associada à bestialidade, ao decaimento humano, e propriamente satânica. Inclusive havia uma festa carnavalesca cristã medieval, chamada de “Festa do Asno”, que antecedia a Quaresma, e que era de uma densidade profana que extremava as imoralidades das festas do Carnaval.

“Por esses exemplos, vê-se que há invariavelmente, nas festas desse gênero, um elemento “sinistro” e até “satânico”, e, o que é bastante notável, é precisamente esse elemento que agrada ao vulgo e estimula a sua alegria; tem-se aí, de fato, algo bastante próprio, até mais do que qualquer outra coisa, para satisfazer as tendências do “homem decaído”, na medida em que essas tendências o levam a desenvolver sobretudo as possibilidades mais inferiores do seu ser. Ora, é justamente nisso que reside a verdadeira razão de ser das festas em questão: trata-se, em resumo, de “canalizar” de certo modo essas tendências e torná-las tão inofensivas quanto possível, dando-lhes a ocasião de se manifestarem, mas somente em períodos bastante breves e em circunstâncias bastante determinadas, e impondo assim a essa manifestação limites estreitos que ela não pode ultrapassar. Se não fosse assim, essas mesmas tendências, sem receber o mínimo de satisfação exigido pelo estado atual da humanidade, correriam o risco de explodir, por assim dizer, e estender seus efeitos à existência inteira, tanto coletiva quanto individual, causando uma desordem muito mais grave que a que se produz somente durante alguns dias especialmente reservados a esse fim e que, por outro lado, é muito menos assustadora por encontrar-se como que “regularizada”, pois, por um lado, é posta fora do curso normal das coisas a fim de não exercer nele nenhuma influência apreciável e, por outro, o fato de não haver nela nada de imprevisto “normaliza”, de certo modo, a própria desordem e a integra na ordem total.
(…)
Para terminar esse esboço, acrescentaremos que, se as festas desse gênero vão diminuindo cada vez mais e já não parecem suscitar tanto o interesse da multidão, é que, em uma época como a nossa, perderam, na verdade, sua razão de ser: como seria possível manter “circunscrita” a desordem e encerrá-la em limites rigorosamente definidos quando ela está difundida por toda parte e se manifesta constantemente em todos os domínios em que se exerce a atividade humana? Assim, o desaparecimento quase completo dessas festas — pelo qual poderíamos, se nos ativéssemos às aparências exteriores e a um ponto de vista simplesmente “estético”, ser tentados a nos alegrar por causa da “feiúra” com que elas inevitavelmente se revestem — , esse desaparecimento, dizíamos, constitui, pelo contrário, quando se vai ao fundo das coisas, um sintoma muito pouco tranquilizador, pois confirma que a desordem irrompeu em todo o curso da existência e se generalizou a tal ponto que poderíamos dizer que vivemos, na verdade, num sinistro “perpétuo carnaval”.”

René Guénon

O Carnaval servia — e serve — para mostrar como são os homens conduzidos pelo domínio demoníaco e sem domínio de si, entregues a seus apetites, excessos e incontinências; mas que confina e controla estes comportamentos desenfreados em períodos pontuais e limitados de dias num ano, que antecedem, assim, a redenção à Páscoa, e restituição da ordem.

“Ao fim da Idade Média, quando as festas grotescas das quais falamos foram suprimidas ou caíram em desuso, produziu-se uma expansão da feitiçaria sem nenhuma proporção com o que se havia visto nos séculos anteriores; esses dois fatos têm entre si uma relação bastante direta, embora normalmente despercebida, o que é, por outro lado, mais impressionante por haver semelhanças bastante notáveis entre essas festas e o sabá das bruxas, onde tudo se fazia também “às avessas”.”

René Guénon

E isto era a função do Carnaval para os cristãos e que, pelo afastamento do Cristianismo fundante da própria Civilização Ocidental fundada, se afastando de seu significado transcendente e espiritual e reduzindo sua Simbólica ao seu caráter puramente estético e hedonista, o carnaval virou o centro de si e se alastrou sem controle, em que o ano inteiro virou uma permanente perdição do Asno sobre os asnos, cada vez mais promíscua, bestial e destemperada.

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C. S. Xavier

No exercício contínuo da mais perene atividade entre os mortais.