Fatos Não Se Manipulam

C. S. Xavier
3 min readMar 10, 2024
O Fato Concreto

É muito comum nos dias de hoje (aparentemente bem mais do que em outras épocas) recheados de lugares-comuns sem sentido e de solecismos tomados como normas, se ouvir: “Isso foi uma manipulação dos fatos”. A expressão é plenamente entendível semanticamente, quer dizer que um determinado acontecimento no mundo real está sendo distorcido quando transferido para o mundo da linguagem, seja numa notícia, reportagem, palestra, discurso ou num diálogo coloquial. Porém, em termos de descrição de realidade, é de uma deformidade estonteante esta construção.

Os fatos são ocorrências que se dão na realidade, de forma sequencial e irretornável. A palavra “fato” vem do Latim “factum, i”, que significa “ação”, “obra”, “feito” e também remete ao particípio passado do verbo “facĭo, ĕre” (“fazer”), “factum”, que quer dizer “feito”. Uma vez acontecido o evento, a sua ação decorre numa integralidade que é percebida de forma fragmentada pelos nossos sentidos (percepção sensível) e reconhecida (ou não) — quase que instantaneamente — pela nossa consciência (percepção inteligível) e que imediatamente é armazenada em nossa memória apenas com alguns arquétipos e uma linguagem associada à recordação que varia de pessoa para pessoa de acordo com a capacidade de cada um. E desta maneira, uma imagem fragmentada do fato se forma imaginariamente em nós com uma impressão de completude meramente simbólica, e que será mais ou menos fidedigna de acordo com a capacidade linguística, intelectual e cognitiva do observador.

A partir da identificação mental entre os objetos e aspectos do fato percebidos e o símbolo cognoscente assimilado ao evento, esta experiência é guardada na memória para poder ser raciocinada e externada através algum tipo de linguagem, seja esta pictórica, gestual ou idiomática (escrita ou falada). A forma mais comum pela qual um fato armazenado na memória é exposto para fora da testemunha, vem através da linguagem idiomática. E é aqui que reside o problema, e não no fato em si.

Se o melhor desenhista do mundo vê um cachorro e depois o desenha, aquela imagem hiper realista é a impressão do cachorro numa determinada posição e que jamais será o animal completo. Quem testemunha um acontecimento e depois tenta descrever com as melhores palavras o que se passou, faz aí uma transmissão fragmentada do fato para qualquer interlocutor que não estava lá e que imaginou o evento a partir da linguagem utilizada que é imediatamente transformada em símbolos visuais, sonoros e com possíveis cargas sentimentais e até emocionais associadas, e que serão mais congruentes com o fato de acordo com a capacidade lingüística, intelectual, cognitiva e mnemônica tanto do narrador quanto do interlocutor.

E é precisamente na transmissão lingüística da experiência de um fato presenciado quando normalmente pode-se acontecer a distorção parcial ou até uma completa inversão geral do que se passou na realidade. O fato em si é absoluto, inalterável e intangível de novos elementos; mas é na comunicação dele para os outros onde reside o calcanhar de Aquiles da deformação ou manipulação. A adulteração de um fato pode se dar primeiramente na própria percepção sensível, depois na percepção inteligível, depois no armazenamento mnemônico e, por fim (e o mais comum), na linguagem sobre os fatos — ou por incapacidade ou por malícia —, que pode, neste caso, descrever o que quiser — e como quiser — sobre eles.

Os fatos não se manipulam, mas sim, a linguagem que usamos para contar os fatos àqueles que não os presenciaram. E hoje em dia, o que mais acontece num mundo imoral, ideologizado, inescrupuloso e entupido de fraudes e fingimentos é exatamente este império da manipulação da linguagem, de mentiras inescrupulosas, em busca do engodo, da enganação, do interesse e dos ganhos pessoais, políticos e econômicos em detrimento da verdade sempre perene dentro de todo e qualquer fato, algo que, por sua etimologia, já foi feito e, portanto, faz parte do passado que, por definição, se cristaliza num tempo inacessível a alterações fáticas, e intrinsicamente imutável.

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C. S. Xavier

No exercício contínuo da mais perene atividade entre os mortais.