Duas Das Desgraças

C. S. Xavier
6 min readMay 5, 2024
A Nova Torre de Babel

Das muitas desgraças que a hegemonia esquerdista causou em muitas das sociedades (especialmente ocidentais) e principalmente por intermédio da velha imprensa e grande mídia nacionais e internacionais, uma das piores foi a Corrupção da Linguagem — de muitos tipos e intensidades —, sendo que duas das mais nefandas corrupções lingüísticas que produziram foram as que chamo de o “Reducionismo Vocabular” e a “Elasticidade Semântica”. Na verdade, são dois fenômenos similares e que se diferenciam mais pela ênfase teleológica: difamar tudo que desgosta num único símbolo negativo ou expandir as significações de um símbolo de modo a relativisticamente abranger inúmeros graus e gêneros de conduta para, assim, na confusão, aplicá-los para o bem ou mal conforme o objeto (alvo ou vítima) sob a conveniência do sujeito (agente).

“O intelectual de esquerda é um tipo curioso, uma hidra de várias cabeças. Com Marx e Engels, ele aprendeu que as condições materiais nas quais vive uma pessoa (ou seja, a sua classe social) determinam a sua consciência. Essa regra tem validade universal, aplicando-se a todos os seres humanos exceto… o intelectual de esquerda ele mesmo. Pois com Nietzsche, o intelectual de esquerda aprendeu que a sua vontade — mas só a sua — é soberana. No seu caso, então, o livre-arbítrio falou mais alto e o intelectual de esquerda, movido pelo aguçado senso de justiça social (que ele imagina ter herdado de Rousseau, o castelão devasso), “decidiu” tomar emprestada a consciência de classe alheia, assumindo como seus os interesses dos desfavorecidos, dos oprimidos, de toda e qualquer vítima do poder. Com Foucault (e com Adorno, Horkheimer, Marcuse e dezenas de outros apóstolos da “critica” autodestrutiva), o intelectual de esquerda aprendeu que esse poder se manifesta nas circunstâncias as mais banais e microscópicas do cotidiano (no “fiu-fiu” do peão de obra à vista de uma formosa dama, por exemplo), cabendo a ele, intelectual de esquerda, a missão de denunciá-lo incessantemente. Com Deleuze e Guattari (ou terá sido com a Regina Casé?), aprendeu que ser de esquerda é adotar a “perspectiva” da margeme da periferia, assumir um “devir” minoritário. Com Zizek… Bem, com Zizek ele aprendeu a celebrar a “violência redentora” dos “black blocs”.
A despeito de suas muitas cabeças, há um coração único que, pulsando, confere a elas unidade, sedimentando uma autoimagem partilhada por todo intelectual de esquerda que se preze. No âmbito da cultura política brasileira, essa autoimagem poderia ser resumida nos versos que o pintor Candido Portinari, um dos quadros mais notáveis do velho PCB, dedicou certa feita à sua própria arte: “Todas as coisas/frágeis e pobres/se parecem comigo.” Resta que, conquanto muito tocante no universo das artes, essa autoidentificação com a fragilidade e a pobreza revela-se catastrófica na esfera da política, criando um espírito de perpétua autovitimização e irresponsabilidade para com o poder político exercido. A experiência de ser frágil, pobre e vítima — ou de estar ao lado dos frágeis, pobres e vítimas — é a base da violência inerente à ação da esquerda revolucionária no mundo. Para compreender o porquê, basta fazer o seguinte experimento intelectual acerca do poder: imagine-se o leitor numa situação hipotética em que é obrigado a empregar a violência para se proteger de um mal qualquer, contra si ou contra os seus. Se somos mais fortes que aquele ou aquilo que nos ameaça, naturalmente não precisaremos levar ao limite extremo todo o nosso potencial de violência. Supondo que o objetivo seja apenas defensivo, bastaria dosar a nossa força ao ponto de neutralizar (sem necessariamente destruir) o adversário. Não se cura unha encravada com quimioterapia, afinal de contas.
A coisa mudaria de figura numa situação de desvantagem. Se um adversário mais poderoso manifesta o desejo de nos destruir, seriamos forçados a empenhar toda a força de que dispomos (quiçá a que não dispomos!) no intuito de impedi-lo. Nesse caso, a única chance de sobrevivência passaria pela utilização máxima do nosso potencial de violência.
Pense agora no que aconteceria se acreditando enfrentar a segunda situação, estivéssemos, de fato, na primeira. Qual uma fera acuada, usaríamos toda a nossa força contra um agressor mais fraco (em menor número ou desarmado, por exemplo), efetivamente incapaz de nos destruir. Imaginando-nos vítimas, nos comportaríamos nesse caso como o mais cruel dos algozes, motivados por medo e desespero. Crendo mover uma luta heroica pela sobrevivência, teriamos ao contrário praticado agressão covarde e desproporcional, como quem enfrentasse uma formiga com uma bazuca.
Aquela perpétua sensação de fera acuada é uma experiência existencial básica de toda esquerda de matriz revolucionária, daí sua ação política ser sempre impiedosa. A luta dessa esquerda — seja ela física, política ou no terreno das ideias — é sempre uma “luta à muerte”, para falar como Che Guevara, uma luta de “tudo ou nada”. Toda vez que age, a esquerda imagina “reagir”. E mesmo quando exerce o poder das maneiras as mais totalitárias e brutais, vê-se sempre como vítima de um poder anterior que justifica as suas ações.
O sentimento de culpa — a famigerada culpa “judaico-cristã”, como há trezentos anos maldizem os revolucionários com esgares de nojo — não integra a estrutura de consciência da esquerda, e é isso que faz com que os males políticos por ela cometidos sejam mais profundos e destruidores que os demais. Não por acaso que os comunistas tenham sido, por um lado, os principais formuladores de um discurso de indignação moral contra os males do mundo e, por outro, os maiores perpetradores desses males, brindando a humanidade com um festival de horrores de dar inveja ao próprio Satanás. Há duas coisas que o comunismo fez em escala industrial: denunciar e matar”.

Flávio Gordon

O Reducionismo Vocabular é quando pegam fenômenos múltiplos e sempre os alocam sistematicamente no mesmo signo pobre, como ocorre com as muitas — e algumas até conflitantes — vertentes direitistas que são sempre alocadas no signo “extremo-direitistas” (ou similares), com significado e significante negativos, gerando um caos que torna impossível essas corjas de imbecis e canalhas compreenderem qualquer coisa desse complexo fenômeno das correntes filosóficas e ideológicas contidas no signo cheio de distinções, convergências, tensões, contradições, imprecisões e confusões denominado de “Direita”. É como chamar todas as frutas existentes de “legume”, o que tornaria impossível alguém pedir uma maçã ou uma laranja para uma outra pessoa, já que sempre chamaria ambas (e todas mais) de “legumes”.

A Elasticidade Semântica é quando fazem um processo de sobrecarga semântica num mesmo signo linguístico, como por exemplo fazem com “democracia” (e derivados), “racismo”, “homofobia”, “liberdade”, “ciência” e muitos outros termos. Em se pegando, por exemplo, a palavra “homofobia”, dependendo sempre de quem está sendo julgado pelo tribunal revolucionário, pode colocar, em par de igualdade, desde uma piada ou uma risada de deboche ao que é pitoresco até uma aversão com agressão física ou, pior, um assassinato; tudo vira a mesma “homofobia”, dependendo sempre de quem a cometeu (seja lá o que tenha feito) a tal homofobia. Como o significado semântico está elástico, cabe ao juiz revolucionário esquerdista que detém a máquina de discriminar em suas patas definir, de acordo com o julgado (se é aliado ou inimigo), qual dos muitos níveis subjetivos de gravidade de sentido a “homofobia” foi empregada: desde nenhuma até a que merece cadeia ou até morte do enquadrado.

“A insinceridade é a grande inimiga da linguagem clara. Quando há um abismo entre nossos objetivos declarados e os reais, quase instintivamente apelamos para palavras longas e expressões gastas, como uma sépia que esguicha tinta”.

George Orwell

Uma linguagem que vem sendo corrompida por estes dois (e entre tantos outros) ardis, tão brutal e sistematicamente, através de gerações dentro de uma hegemonia cultural esquerdista multinacional — que domina os meios jornalísticos, acadêmicos, universitários, midiáticos, artísticos, educacionais e políticos — perverte não só os objetos do engodo mas seus sujeitos; estraga não só a própria linguagem e a inteligência de quem se vale desta moléstia estupidificadora, mas também todo sistema cognitivo (percepção, intelecção, raciocínio, interpretação, entendimento, expressão e juízo); e evidentemente apodrece o caráter tanto de quem deliberadamente o faz quanto de quem incautamente recebe. Uma linguagem corrompida e cada vez mais dissociada da realidade impossibilita o contato do indivíduo com a verdade e a possibilidade mesma de sinceridade: alguém que já esteja tão profundamente viciado neste equívoco, nesta anomalia, nesta praga é incapaz de ser sincero, mesmo que pense que esteja sendo; é incapaz não só de lidar com a verdade, mas de reconhecê-la ou até mesmo de encontrá-la. Eis o derradeiro fim desta perversão: legiões, exércitos de pessoas alienadas, insinceras, estúpidas, fingidas, injustas e progressivamente canalhas.

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C. S. Xavier

No exercício contínuo da mais perene atividade entre os mortais.