A Dialética Do Conforto

C. S. Xavier
17 min readOct 17, 2021

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Morto: Mas Absorto no Conforto

É inegável o lado bom que o conforto, criado pela inteligência e cultura humanas, promove a todos nós por intermédio das descobertas científicas e inovações tecnológicas (inovações tecnológicas que, muitas vezes, surgem independente do acompanhamento das descobertas científicas que as expliquem na teoria). Não é preciso muito esforço para perceber as melhorias da velocidade, variedade, eficácia, eficiência, acessibilidade, portabilidade e comodidade geradas pelo aumento do conforto nas comunicações, transportes, medicina, construções, informações, manutenções, segurança, mídias, fabricações, produções e demais nichos. Porém, o que é pouco analisado é a dialética do conforto, ou seja, os aspectos negativos que ele inexoravelmente nos traz, em binômios ou em relações intrincadas de inúmeros ganhos e negligenciadas perdas, de evidentes proveitos e ocultos danos.

Quando uso o termo “conforto”, nele está agregado pelo menos uma destas características ou qualidades inerentes que invocarei a seguir (e não exaustivamente): velocidade, facilidade, acessibilidade, segurança, precisão, comodidade, variedade, confiabilidade, quantidade, praticidade, durabilidade, barateamento, qualidade, eficiência e eficácia. Podendo a cada conforto conter mais de uma destas características citadas ou, às vezes, todas. E a questão que quase nunca é analisada, debatida e criticada é: O que mais um conforto pode gerar de ruim? Como que mais velocidade, facilidade, acessibilidade, segurança, precisão, comodidade, variedade, confiabilidade, quantidade, praticidade, durabilidade, barateamento, qualidade, eficiência e eficácia podem trazer de malefícios psicológicos, materiais, comportamentais, sociais, morais, intelectuais, existenciais, civilizacionais e espirituais?

Uma boa introdução ao assunto pode ser extraída do ensaio crítico “Em Defesa da Lareira”, de 1945, do escritor George Orwell (1903–1950), em que ele faz uma crítica interessante que reage à inovação tecnológica, não por seus inventos, confortos, praticidades, economias, ecologias e comodidades, mas pelos efeitos colaterais psicológicos, familiares, sociais, éticos, morais e comportamentais, em geral, que podem produzir (e só empenhando a sua atenção na mudança das lareiras nos lares britânicos por aquecedores industriais), numa escala que o intento do invento jamais poderia conceber que afetaria.

“Não estou dizendo que as lareiras deveriam ser a única forma de aquecimento, mas apenas que cada casa deveria ter ao menos uma lareira em torno da qual a família pudesse sentar. Em nosso clima, qualquer coisa que nos mantenha aquecidos é bem-vinda, e sob condições ideais, todas as formas de aparelho de aquecimento seriam instaladas em todas as casas.
Para qualquer tipo de sala de trabalho, o aquecimento central é a melhor solução. Ele não exige atenção e, uma vez que aquece todas as partes da sala igualmente, pode-se agrupar a mobília de acordo com as necessidades do trabalho.
Para quartos de dormir, aquecedores elétricos ou a gás são os melhores. Até o humilde aquecedor a querosene produz muito calor e tem a virtude de ser portátil. É um grande conforto levá-lo para o banheiro numa manhã de inverno. Mas, para uma sala em que se vai conviver, somente uma lareira resolve.
A primeira grande virtude de uma lareira a carvão é que, como só aquece um lado da sala, força as pessoas a se agrupar de uma forma sociável. Nesta noite, enquanto escrevo, o mesmo padrão se reproduz em centenas de milhares de lares britânicos.
De um lado da lareira está sentado papai, lendo o vespertino. Do outro lado, está mamãe, fazendo seu tricô. No tapete diante do fogo estão as crianças, com um jogo de tabuleiro. Junto ao guarda-fogo, fazendo assado de si mesmo, jaz o cachorro. É um padrão gracioso, um bom pano de fundo para nossas lembranças, e a sobrevivência da família como instituição talvez dependa mais dele do que percebemos.
Depois, há o fascínio, inexaurível para uma criança, do próprio fogo. Um fogo nunca é o mesmo por dois minutos seguidos, pode-se olhar o coração vermelho das brasas e ver cavernas, rostos ou salamandras, conforme a imaginação de cada um; você pode até, se seus pais deixarem, se divertir esquentando o atiçador de brasas até ficar candente e vergá-lo entre as barras da grade protetora, ou polvilhar sal nas chamas para que fiquem verdes.
Um aquecedor a gás ou elétrico, ou até mesmo um fogão a antracito, é uma coisa triste em comparação. Os objetos mais sinistros de todos são aquelas lareiras elétricas falsas construídas para parecer que são a carvão. O simples fato de ser uma imitação não é um reconhecimento de que a coisa verdadeira é superior?
Se, como eu sustento, uma lareira propicia a sociabilidade e tem um atrativo estético particularmente importante para crianças pequenas, então ela vale o trabalho que acarreta.
Não há como negar que ela é causa de desperdício, bagunça e trabalho evitável: tudo isso poderia ser dito de um bebê. A questão é que os aparelhos domésticos não devem ser julgados apenas por sua eficiência, mas pelo prazer e conforto que se obtém deles”.

George Orwell

Partindo desta análise do ensaísta britânico, podemos conjecturar que o conforto que trouxe mais velocidade também trouxe mais impaciência. O conforto que trouxe mais acessibilidade também trouxe mais inaptidão. O conforto que trouxe mais segurança também trouxe mais descuido. O conforto que trouxe mais precisão também trouxe mais imperícia. O conforto que trouxe mais confiabilidade também trouxe menos tolerância. O conforto que trouxe mais facilidade também trouxe mais procrastinação. O conforto que trouxe mais comodidade também trouxe menos resiliência. O conforto que trouxe mais variedade também trouxe menos discernimento. O conforto que trouxe mais quantidade também trouxe menos gratidão. O conforto que trouxe mais praticidade também trouxe menos raciocínio. O conforto que trouxe mais durabilidade também trouxe menos cuidado. O conforto que trouxe mais barateamento também trouxe mais desperdício. O conforto que trouxe mais qualidade também trouxe menos tolerância. O conforto que trouxe mais eficiência também trouxe mais mesquinhez. E o conforto que trouxe mais eficácia também trouxe mais impessoalidade.

A Família Reunida em Torno da Lareira

Pegando apenas o exemplo da evolução da televisão: do seu início até hoje. Quando inventado e lançado no mercado, o aparelho televisor era muito caro, com imagens ruins e em preto e branco, com poucos canais, com escassa programação oferecida (on demand), com qualidade duvidosa, e com troca manual de canais. Então, a maioria das pessoas que não tinham condições de ter um televisor próprio: tinham que fazer a amizade e se reunirem na casa de quem tinha uma, forçando laços sociais, convivência, benevolência. Além disso, tinha que ter uma adaptabilidade invejável, além de paciência muito grande para se adequar à programação existente (escassa e ruim) oferecida pelas poucas emissoras de televisão. Quem quisesse comprar tinha que fazer um grande esforço de poupança, economia, perseverança para adquirir uma televisão. Depois de adquirido um televisor, havia de ter um grande zelo para com ele para preservar o item raro e caro, além da gratidão pela satisfação de adquirir um. E quando se ia assistir a televisão, a família se reunia na sala para ver aquela preciosidade (que só havia uma e que ficava naquele local da casa, geralmente a sala), uma maravilha com imagens, sons e movimentos, um mini-cinema onde as famílias se encontravam e interagiam, se socializavam e conversavam, e toda vez que, sozinho ou em grupo, se quisesse tirar de um dos poucos canais disponíveis, deveria se levantar da poltrona ou sofá, mudar o canal e depois voltar a se sentar ou deitar. Ou era assim, ou era deixar no programa ruim por preguiça e em prol de testar a própria paciência.

Com a evolução tecnológica e aumento do conforto oferecido no nicho da televisão (e demais segmentos envolvidos), os aparelhos televisores foram sendo barateados, o que permitiu cada casa ter um deles (o que diminuiu a socialização entre vizinhos) e, dentro de casa, possibilitou haver mais de um televisor — além da sala — nos quartos, na cozinha e até em banheiros, em que cada um podia ver o que quisesse (o que diminuiu a interação familiar diária: é cada um na sua bolha, em seu cômodo, um longe do outro; e, em muitas vezes, na sala mesmo nem precisa mais haver um local de reunião para a televisão). Com o surgimento do conforto do controle remoto, dispensou-se a “árdua” tarefa de ter que se levantar do sofá ou poltrona para trocar de canais (o que aumentou a preguiça e ociosidade, além de ter diminuído a paciência). E com as televisões por assinatura que começaram a fornecer dezenas, centenas de canais, aumentou-se a oferta de programação e com imagens crescentemente melhores (o que aumentou a impaciência, a intolerância, e diminuiu o discernimento: há mais canais que um ser humano tem o tempo hábil para conhecer; e não é muito comum mudar os canais pelo controle remoto na velocidade do bater de asas de um beija-flor, rodar em segundos mais de centenas de canais e, por fim, exclamar: “Não tem nada para ver nesta porcaria!”). Repara no quanto o conforto mudou e melhorou (por um lado) e só se retendo no tema “televisão” e (e confortos e tecnologias associadas a ela), mas o quanto também alterou e piorou coisas importantíssimas da existência e convivência humanas por vários outros lados (estes nunca ou quase nunca sendo abordados).

Se retroajo mais, quando nem rádio ainda havia, só jornais impressos, as pessoas tinham que ler mais. Livros eram um presente dos céus. Crianças que fossem contempladas com livros, os devoravam. Um jovem estudante (especialmente universitário) praticante tinha que estar familiarizado com quase toda a Grande Literatura nacional e mundial (ficcional, filosófica, historiográfica, biográfica, científica e religiosa). As bibliotecas públicas eram lugares fundamentais a estudantes e intelectuais. As pessoas eram muito mais cultas (inclusive as mais simples, porque possuíam uma intelectualidade e elite muito mais preparada e erudita e que, por isso, irradiavam tais saberes e letras para todos abaixo deles). Muitos contos, romances e novelas eram encomendados de grandes escritores (ou traduzidos) e publicados em fascículos pelos jornais impressos e as pessoas comuns acompanhavam (foi assim com “O Triste Fim de Policarpo Quaresma”, do Lima Barreto (1881–1922), levado às massas, em capítulos semanais, pelo “Jornal do Commercio”, em 1911).

O advento do rádio diminuiu — e muito — essa cultura literária e o hábito da leitura dos grandes escritores, historiadores, filósofos, santos e gênios da Humanidade; a televisão mais ainda; e a internet praticamente necrosou tal hábito, e numa espécie de paradoxo nefasto: nunca se teve tantos livros à disposição de todos (e a maioria de graça), com o advento da internet; porém, nunca se leu tão pouco a Grande Literatura mundial e nunca se escolheu tão mal aquilo que se deveria ler primeiro; a erudição e discernimento ruíram nesse oceano de opções e confortos, e que transformou a tudo num grande brejo. Seria importantíssimo se pudéssemos fazer uma pesquisa de quantas pessoas, abaixo dos cinqüenta anos, leram Machado de Assis, Manuel Bandeira, William Shakespeare, Dante Alighieri, Platão, Aristóteles, Santo Agostinho hoje, e quantas nessa mesma faixa os leram há 30, 60, 90 e 120 anos. A minha intuição é extremamente pessimista quanto aos números…

“Depois de dois anos fuçando jornais velhos, descobri que, no Brasil, dos anos 20 até o início da década de 60:

(1) A classe letrada lia Chesterton, Mauriac, Bernanos, Julien Green, Paul Claudel, Bloy, Rilke, Pirandello, Paul Valery, Camus, Berdiaev, René Guenón, Dostoievski, Racine, Somerset Maugham, André Gide, Gabriel Marcel, Louis Lavelle, René Le Senne, Reginald Garrigou Lagrange, Fulton Sheen, Huizinga, Ortega, Jacob Burckhardt, Julien Benda, Jan i, Jean Cocteau, Thomas Mann, Miguel Torga, Proust, T. S. Eliot, Maeterlinck, Juan Ramón Jiménez, Benedetto Croce, Whitehead, Charles Morgan e Grahan Greene;

(2) Num mesmo jornal escreviam “feras” como Ascendino Leite, Augusto Frederico Schmidt, Brito Broca, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Cyro do Anjos, Clarice Lispector, Gilberto Freyre, José Lins do Rego, Jorge de Lima, José Geraldo Vieira, Josué Montello, Otto Maria Carpeaux, Paulo Ronái e Vicente Ferreira da Silva;

(3) No “A Manhã”, você encontrava: Adonias Filho, Alcântara Silveira, Alceu Amoroso Lima, Alphonsus Guimarães, Aníbal Machado, Ascendino Leite, Augusto Frederico Schmidt, Augusto Meyer, Breno Accioly, Berdiaev (russo), Cassiano Ricardo, Cecília Meireles, Cyro dos Anjos, Clarice Lispector, Mário Quintana, Ledo Ivo, José Geraldo Vieira, Jorge de Lima, Guerreiro Ramos, Lúcio Cardoso, Manuel Bandeira, Marques Rebelo, Octávio de Faria, Murilo Mendes, Otto Maria Carpeaux, Rosário Fusco, Tasso da Silveira e Vicente Ferreira da Silva;

(4) No “Tribuna da Imprensa”, você lia Carlos Lacerda, Gustavo Corção, François Mauriac, Fulton Sheen, João Camilo de Oliveira Torres, Gladstone Chaves de Melo, Octávio Tarquínio de Sousa, Alfredo Lage, Alceu Amoroso Lima, Ștefan Baciu, Raymond Aaron e Daniel-Rops;

(5) No “Suplemento Literário do Estado de São Paulo”, Villén Flusser, João Gaspar Simões (que era português), Antônio Carlos Villaça e Ruy Afonso da Costa Nunes;

(6) No “Correio da Manhã”, o encontro era com Walter Lippman, Gilberto Freyre, Raquel de Queiroz, Sergio Buarque de Holanda, Sergio Milliet, Câmara Cascudo, Francisco de Assis Barbosa, Álvaro Lins, André Malraux, Genolino Amado, Augusto Frederico Schmidt e Peregrino Júnior;

(7) Havia uma intelectualidade vibrante em torno do Centro Dom Vital, criado pelo Jackson de Figueiredo. Figuras como Alceu, Alfredo Lage, Oscar Mendes, Hamilton Nogueira, Jonathas Serrano, Perilo Gomes, Maurílio Penido e Leonel Franca;

(8) A intelectualidade católica se destacava nas Letras: Alceu Amoroso Lima, Álvaro Lins, Otto Maria Carpeaux, Alcântara Machado, Jorge de Lima, Paulo Setúbal, Tasso da Silveira, Augusto Frederico Schmidt, Cornélio Pena, Lúcio Cardoso, Gustavo Corção, Cassiano Ricardo, Plínio Salgado, José Américo de Almeida, José Lins do Rêgo, Andrade Muricy, Murilo Mendes, Octávio de Faria, José Geraldo Vieira, Alphonsus de Guimarães Filho, Peregrino Júnior, Carlos Lacerda, Carolina Nabuco, Adalgisa Nery, Lúcia Benedetti, Henriqueta Lisboa, Roberto Alvim Correia, Antônio Calado, Mário de Andrade, Adonias Filho, Osman Lins, Gladstone Chaves de Mello, Ariano Suassuna e Nelson Rodrigues. Na teologia e na filosofia: padre Leonel Franca, Alexandre Correia, padre Teixeira Leite Penido, frei Boaventura, padre Ávila. Na história e no jornalismo: Felício dos Santos, Perilo Gomes, Oliveira Viana, Hamilton Nogueira, João Camilo de Oliveira Torres, Pedro Calmon, Hélio Viana, Edgard da Mata Machado, Fernando Carneiro, Heráclito Sobral Pinto, Hildebrando Accioly, Affonso Pena Júnior, Alfredo Valadão, Hélio Tornaghi, Francisco Mangabeira, Celestino Basílio, Altino Arantes.

Depois, um imenso asteróide vermelho atingiu o Brasil. O asteróide contaminou o país, levando os sobreviventes a um estado de embrutecimento, loucura e alienação”.

Daniel Fernandes

A Família Reunida em Torno do Televisor

O mesmo critério de análise do que eu chamo de “Dialética do Conforto” pode ser observado em qualquer setor ou nicho do desenvolvimento humano. Se pegarmos o mundo antes da telefonia, antes do telefone, vivíamos no “Império das Cartas”, do contatos epistolares entre as pessoas. O telefone permitiu que pessoas distantes, às vezes continentalmente afastadas, pudessem se comunicar em tempo real. Uma maravilha, não? Claro! Porém… “Porém, o quê?” — me pergunta o modernista afoito —; porém, também perdemos algo. Uma carta deveria ser escrita e endereçada, logo ler e escrever — ou fazer amizade com quem sabe ler e escrever — era fundamental. Havia um trabalho estético e até idealizado, já que numa redação epistolar a pessoa tem tempo de meditar, corrigir, reescrever, embelezar e enviar algo melhor do que numa conversa telefônica cujo tempo de raciocínio é imediato e puramente reflexivo. Após escrita e enviada uma carta, havia a espera, o exercício da paciência, até que semanas, meses depois, houvesse uma resposta (ou não). Havia a imaginação aflorada e o treinamento da leitura e escrita ao ler uma carta, que sempre estava desatualizada pelo tempo que se levava para enviar e receber (muitas vezes, ao ler uma carta, tudo o que estava ali relatado poderia estar completamente diferente, ou mesmo o remetente, poderia nem mais estar vivo — como inúmeras vezes ocorreu, especialmente em tempo de guerra nas cartas dos homens do fronte). E havia toda a expectativa e rito de enviar e esperar uma resposta e de receber e ler uma carta (muitas vezes com fotos ou cartões postais). E sempre de guardá-las (especialmente as românticas). Tudo isso se perdeu com o advento da telefonia e barateamento do telefone. E se introduzirmos então a internet (com vídeos de Skype, MSN, Facebook, WhatsApp), daí que tudo isso se perdeu mesmo e se banalizaram as presenças e saudades. Há décadas não recebemos e nem enviamos mais cartões de Natal, está tudo tão mecânico, automático, coletivo, despretensioso, impessoal. E isso é bom por um lado, mas ruim por outro; assim como as fotos fáceis e infinitas digitais de hoje, que baratearam os filmes (de 12, 24, 36 posições) e suas onerosas revelações, ao mesmo tempo que, em medidas exponenciais, banalizou a fotografia, rebaixando o critério e a pertinência e potencializando a vulgaridade e estupidez das pessoas em suas necessidades de se exporem e de se entregarem ao ridículo e ao vazio a qualquer momento e cada vez mais, em doses cavalares. E é desta forma que insisto que o conforto seja sempre analisado (e não só por seu evidente lado bom).

Talvez o problema fulcral entre as inovações tecnológicas e científicas que nos trazem os evidentes benesses da velocidade, facilidade, acessibilidade, segurança, precisão, comodidade, variedade, confiabilidade, quantidade, praticidade, durabilidade, barateamento, qualidade, eficiência e eficácia (entre outros mais benefícios) esteja em ignorarmos dialeticamente não só o que o novo (moderno) traz, mas também o que tira; não só as novas melhorias que vêm, mas também as antigas melhorias que saem (e, muitas vezes, para sempre); perscrutarmos, ao máximo possível, tudo o que ganhamos e tudo o que perdemos para que, assim, possamos estabelecer um equilíbrio e traçarmos recomendações de uso, como uma bula de um remédio que ajuda a curar mas que deve alertar sobre os efeitos colaterais que são inerentes aos efeitos centrais. É a velha — e difícil de se achar — "mediania aristotélica", onde encontramos as virtudes segundo o Estagirita.

"A virtude é uma espécie de mediania. Por outro lado, o erro é multiforme (...), ao passo que o êxito somente é possível de uma única maneira (razão pela qual aquele é fácil e este difícil — fácil errar o alvo e difícil acertá-lo); eis aí uma razão adicional do porque o excesso e a deficiência são uma marca do vício e a mediania uma marca da virtude, ou seja:
De fato, simples é a bondade [humana], múltipla a maldade".

Aristóteles

Hoje temos um tempo incrivelmente desperdiçado com ninharias, por pessoas com aparatos cognitivos, domínio do idioma, graus de leitura, erudição, intelectos e caracteres cada vez mais distorcidos e limítrofes (e me refiro ao que deveria ser as nossas elites intelectuais, culturais, morais e espirituais), com uma consciência histórica animalesca (povoada de mitos que tomam como verdades incontestáveis) e perdida da linhagem geracional, com uma imaginação moral doentia (pervertida e escassa de amostras, completamente tempista ou cronocêntrica), uma hierarquia de valores desorientada (entre o bem e o mal, o certo e o errado, o belo e o feio, o justo e o injusto, a verdade e a mentira), um senso de proporções demoníaco (em que as pessoas não conseguem comparar duas coisas claramente diferentes e discernir o patente pior do melhor e atribuir um correto peso e valor a cada um deles), levando a uma deturpação e até inversão de valores de importância e conduzindo a uma profunda degradação do juízo e sanidade das pessoas e do próprio senso comum vilipendiado.

E esses ressecamento, embrutecimento e decaimento generalizados, intelectual, lingüístico, psicológico, moral, social, existencial, civilizacional e espiritual do advento de todos os confortos trazidos pela tecnologia, já estão acontecendo com pessoas de outras gerações que pegaram uma outra cultura mais rica e menos confortável (anterior à internet e, às vezes, à própria banalização da televisão); pessoas que nasceram e cresceram sem tantas televisões, canais, celulares, redes sociais e overdoses de informação. Agora imagina o estrago que isso pode causar nas gerações nascidas em meados de 1990 em diante? Que já pegaram o mundo assim e pouco ou nada sabem do mundo (e suas dificuldades) de antes?

“A maioria das pessoas costuma iludir-se pensando que liberdade consiste em fazer o que é agradável ou o que proporciona conforto e facilidade. A verdade é que aqueles que subordinam a razão a seus sentimentos do momento são na realidade escravos de seus desejos e aversões. Não estão preparados para agir de forma digna e eficaz quando ocorrem desafios inesperados, como é inevitável acontecer.
A liberdade autêntica nos impõe certas exigências. Ao descobrir e assimilar nossas relações fundamentais com os outros e ao desempenhar com entusiasmo nossos deveres, a liberdade verdadeira, que todos anseiam ter, torna-se realmente possível.”

Epicteto

Estamos com crianças, adolescentes, jovens e já adultos abruptamente ignorantes históricos (seres adâmicos e cronocêntricos), sendo formados por enxurradas de confusão simbólica, lingüística e ideológica, vastamente incultos, ansiosos, ingratos, frágeis, mimados, fingidos, estressados, impacientes, mas que dominam e dependem das técnicas e confortos trazidos, que não querem saber como surgiram, em que quase nenhum deles saberia como trazê-los (caso os perdessem). E nesse turbilhão de confortos e suas benesses que as últimas gerações foram contempladas, surgiram também uma era, de afetações, misologias, arrogâncias, neuroses, dependências, ignorâncias, burrices, ingratidões e pusilanimidades mil.

Remédios variados, baratos, eficazes e acessíveis são excelentes, bem como anestesias nos dentistas e demais cirurgias; porém o quanto isso nos deixou intolerantes ao mais mínimo desconforto ou o quanto decaiu a nossa capacidade de suportar níveis de dores que nossos antepassados suportavam? O quanto isso nos enfraqueceu? E o quanto nossas paciências diminuíram e nossas ansiedades aumentaram? O quanto nossa inteligência e cultura diminuiu enquanto as opções e distrações com futilidades aumentaram? O quanto o nosso domínio da linguagem e sua submissão à realidade se degradou, junto com nosso juízo, discernimento e capacidade de escolha? O quanto nossas saúdes mentais pioraram e nossas capacidades de nos conhecermos melhor e de conseguirmos ficar sozinhos diminuíram? O quanto as nossas relações interpessoais se fragmentaram com o aumento dos contatos virtuais entre nós pelos meios de comunicação e redes sociais na mesma medida em que perdemos a capacidade de atenção, empatia e aproveitamento dos contatos pessoais e reais, presentes ali na nossa frente? São as reuniões, festas e encontros em bares e restaurantes em que todos estão presentes ali e mais preocupados de compartilharem e de se comunicarem com os ausentes, numa espécie de “voyeurismo” social, do que interagirem entre si, se tocarem, se olharem, de aproveitarem o momento presencial.

E qual a solução para isso? É banir todos os confortos por seus males dialéticos agregados? É evidente que não e, antes que me perguntem, eu não tenho a mais mínima idéia do que poderia “resolver” isso tudo sem uma atitude drástica. Na verdade, nem sei se tem solução para isso. Mas, uma coisa eu tenho certeza: caso haja uma solução, ou pelo menos uma harmonização dialética, um equilíbrio saudável para as mazelas dos confortos que as tecnologias foram trazendo, a primeira etapa dela deve ser isto que fiz aqui, a exposição e descrição do problema, suas causas e conseqüências; a transposição em linguagem — sistematicamente sendo aprimorada e detalhada — para que possamos tomar consciência e posse expressiva, cognitiva, intelectiva e racional deste enorme problema sorrateiro e oceânico. E sempre nos preocuparmos de apontar não só o lado bom patente de cada conforto, mas o lado ruim, o que perdemos com sua vinda, e não só o que ganhamos.

A Perda do Hábito da Leitura: O Conforto Criando o Desconforto de Ler

“A idéia mais estúpida e mais criminosa que a elite acadêmica espalhou pelo mundo é que o progresso da ciência e da tecnologia aumenta o “poder da humanidade sobre a natureza material”. Muito mais, muito antes, e até como condição indispensável para que esse efeito alegadamente maravilhoso possa produzir-se, o progresso mencionado aumenta o poder de uns homens sobre os outros.
Quem pode decentemente ignorar que civilizações tidas como portadoras de conhecimentos científicos superiores até à imaginação moderna foram, todas, sem exceção, civilizações demoníacas baseadas na escravidão e nos sacrifícios humanos?”

Olavo de Carvalho

Mas as pessoas se acostumaram e, na verdade, ficaram viciadas, dependentes deste culto estúpido e subserviente ao novo, à mudança como um valor (só porque mudou). Qualquer tecnologia sofisticada e que opera mil maravilhas, mediante um controle sobre as posições, gostos, hábitos, necessidades e obrigações, é vista como um ídolo de pirita, fazendo-se, filas para se trocar pelo ídolo anterior. Almejam sem pestanejar, encantadíssimos, tudo que pode ser automatizado sem controle ou sequer ciência de seu proprietário: redes de telefonia ou de posicionamento geográfico que monitoram todas as nossas posições; internet que armazena todas as nossas buscas, visualizações e escritos; carros que nos dirigem via satélites e centrais de controle (que desconhecemos seus controladores); casas integradas e em redes inteligentes que funcionam por programas que nos integram a empresas de domóticas ou de segurança, as quais são integradas a governos, mídias e multinacionais.

O progresso da tecnologia, além de trazer todo o tipo mais sofisticado de conforto, que os tolos só conseguem louvar e se maravilharem, cria também os meios mais potentes à produção da criminalidade, os poderes mais inacessíveis às massas para o controle das maiores potestades e principados sobre todos os demais, e as privações que se tornam imediatamente desejadas — e objetos de desejos, carências, necessidades e revoltas — e que antes nem sequer havia: ao se lançar algo novo, centenas de milhões, bilhões se veem privados daquilo que era algo que antes nem existia e que, por isso, jamais sentiu falta, só que, após lançado, se convence que não conseguirão viver sem. Isso tudo é um grave e inexorável problema, mas quem está pensando e se preocupando sobre esta dialética que pode ser catastrófica e que ninguém bem se dá conta disso?

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C. S. Xavier

No exercício contínuo da mais perene atividade entre os mortais.